Mãe

       




        Mãe, você nos deixou em um domingo, mas o dia que nos despedimos de você não foi nem segunda, nem terça, quarta ou fim de semana. Foi um dia sem nome, sem nexo, um dia em que o tempo parou e ficou um eco dentro da gente.


        Mãe, você partiu de uma forma muito inesperada pra mostrar que, afinal, a vida é realmente é uma gigante piada. A gente se preocupou tanto com uma coisa, pro final a vida dar a cartada final através de algo que nem era nossa preocupação. Curioso né? Eu acho que vamos levar muito tempo pra entender tudo.


        Mãe, quando eu cheguei pra me despedir, eu encontrei um amparo muito grande nas minhas duas irmãs e no meu pai. Eu sabia do poder da nossa família e da nossa união. Deve ser por isso que, desde que você ganhou um celular da gente no dia das mães de 2017 e instalou o WhatsApp, o seu status sempre foi "Família abençoada", porque mesmo com nossos problemas, essa era a nossa definição. Uma benção do senhor. Eu lembro desse dia do status. Nós estávamos na Cachoeira do Saltão (onde nós também celebramos seu último aniversário) e eu disse: "mãe, você tem que por um status pro seu Zap ficar bonitinho". E você disse: "põe ai Família Abençoada". E tem sido assim desde então.


        Mãe, eu relutei muito pra entrar naquela sala onde estava seu corpo. Durante as 11h de voo e mais 2h de viagem de carro eu estive com um imenso frio na barriga, pensando no momento que eu veria seu corpo em um caixão. Quando eu subi aquela rampa meu corpo ficou fraco. Quando eu entrei naquela sala, abraçada pelas minhas irmãs e meu pai, seu eterno amor, minhas pernas ficaram fracas e saiu um grito tão grande dentro de mim, que eu nunca havia ouvido minha voz naquela tom. Mãe, um dia antes eu passei por um procedimento médico e senti muita dor, dei um grito na sala do hospital. Mas isso não foi nada parecido com a voz que saiu da minha garganta diante de você, ali, na minha frente. Mãe, meu corpo se contorceu, parecia que tinha uma faca muito grande no meu peito, eu fiquei fraca, sem forças, o mundo ficou em silêncio, eu não enxerguei ninguém atrás de mim, eu esqueci quem eu era, onde eu estava, eu esqueci tudo mãe, tudo. Como poderia a mulher que me deu a vida, aquela que eu estive conectada por um cordão, aquela eu vivi dentro desde minha concepção, que me amamentou, que me ensinou a falar, a andar, a comer, a pentear meus cabelos, a me limpar, a tomar banho, a ser criança, ser mulher, aquela mulher que me ensinou a ser humano, estar ali, sem vida? Mãe, isso não era e ainda não é justo.


        Mãe, eu achei que teria medo de encostar no seu corpo, mas foi tudo natural. As meninas selecionaram uma roupa muito chique e formal pra você: um conjunto púrpura com um terno preto (o mesmo terno que eu usava nas minhas audiências online e nas apresentações da faculdade), um par de brincos de brilhante. Elas também pediram para pintar sua unha de rosa, a passarem uma maquiagem bem discreta e elegante, finalizada com batom também rosa, parecido com o que você tem em casa. Eu tinha medo de você estar inchada, desfigurada, não ser você, mas não. Você estava linda, serena, corada, não estava fria, seu cabelo estava mais escuro, você parecia estar dormindo tranquilamente. Inclusive, durante o voo, eu vim olhando as fotos da minha galeria e vi uma que tirei na pandemia, onde você estava dormindo com as duas mãos no peito e o Lineo também dormia do seu lado, com a barriga pra cima. Lembro que tirei essa foto porque parecia que estava morta e brinquei com você. Então, ver você parecendo estar dormindo em casa me deu uma paz. Você estava descansando. Não era bem minha mãe, mas aquele corpo velado pertenceu a minha mãe. Eu te reconheci.


        Mãe, sabe outra coisa? Você estava cheirosa! As meninas disseram que pediram para passar o seu perfume e você estava com seu cheiro. Mãe, eu tinha medo de você cheirar a gente morta. Mas você estava com seu perfume e isso não significa que aquele era exatamente seu cheiro. Aquele não era aquele seu cheiro de mãe, que era um misto de hidratante de corpo, de mão, de creme de rosto, de roupa meio molhada por lavar louça ou cozinhar alguma coisa boa. Mas aquele cheiro lembrou quem era você. Mãe, eu adorava te abraçar e te apertar, porque você era pequeninha e magrinha, e mesmo na sua despedida, não podia ser diferente. Desde que cheguei, eu beijei seu rosto, sua testa, sua mão, fiz carinho no seu colo (acho que é minha parte favorita sua desde a infância). Vou sentir falta para sempre de te tocar, de ficar juntinha de você, de arrumar seu cabelo quando a gente sai, de fazer uma maquiagem.


        Mãe, eu preciso te falar também que meu medo também era de que ninguém fosse na sua despedida. Na minha cabeça, só iriam nossos familiares da cidade, alguns amigos próximos e algum outro conhecido. Mas mãe, a sua sala estava lotada! Mãe, tinha tanta gente que eu nunca vi na vida e que me abraçou forte, contou histórias boas sobre você, chorou muito dizendo que sentiria sua falta e aí eu tive outra dimensão de quem era Adriana. Você não era só a nossa mãe, a vó do Arthur, a esposa do Daniel, a irmã do Reginaldo e da Luciana. Você era a paciente amada pelas enfermeiras, a amiga do trabalho que tinha inúmeras histórias divertidas, a melhor amiga de adolescência que aprontou poucas e boas quando jovem, a colega da senhorinha da rua que ajudava ela a vender Avon, a vizinha que antes tinha um neném pequeno e que precisava de ajuda com o início daquela vida nova, a amiga que adorava tomar uma cervejinha e comer uma pizza e churrasco aos sábados, a companheira de artesanato e de pintura, a amiga que trocava dicas de chás, saladas, comidas saudáveis, a sobrinha tão amada e carinhosa, a comadre que era muito divertida, a vizinha da frente que ficava conversando com a outra vizinha da sacada, a afilhada que deixou um tapete de crochê por fazer e que era muito talentosa, a sogra carinhosa, atenciosa que fazia o melhor pão de queijo do mundo, a avó de duas gatas e um cachorro, que adorava apertar eles o tempo todo.


        Mãe, além da sua despedida estar lotada, tudo estava tão florido, com flores brancas, vermelhas, laranjas, rosas, eu acho que você iria adorar. Você gosta muito de planta né? Inclusive, o pai já tá regando as suas plantinhas aqui todos os dias, esse é um dos legados que você vai nos deixar. Só não sei se deixaremos a safo do Alonso, que você conhece né, adora comer tudo que vê pela frente.


            Mãe, uma amiga sua que foi se despedir e chorou tanto tanto tanto, disse de uma história do dia em que vocês ficaram presas no estacionamento do mercado, a noite, e vocês estavam com uns 3kg de polvilho. Daí você brincou que se a polícia chegasse, vocês três iriam presas por conta de tanto pó branco no carro. A sua amiga riu tanto naquele momento, que ela quase fez xixi nas calças. Eu ri demais com a história. Você era muito divertida né? Gostava muito de brincar com as pessoas e é por isso também que as pessoas te amavam tanto, porque era muito leve estar com você.


        Mãe, eu sinto que agora eu já não sou mais eu. Você foi embora e parece clichê, mas uma parte em mim morreu também. Eu sei que você vai ficar brava, mas eu não vejo mais sentido em nada. Mãe, não sei se quero terminar meu mestrado, não sei se quero mais casar, ter filhos, não sei se quero encontrar um outro emprego, eu não quero nada mãe. Eu queria era passar os dias aqui trabalhando do meu quarto, almoçar com você, receber seu cafézinho a tarde, comer um pãozinho no fim do expediente, passar a noite assistindo GNT, jantar e reclamar sobre quem vai lavar a louça. Mãe, eu só queria isso. Confesso que nesses dias eu senti culpa por ter ido fazer mestrado no exterior. Se eu soubesse que você partiria tão cedo, eu teria ficado aqui nessa casa morando com você, com nossa rotina tão boa, não iria fazer mestrado nenhum. Mas sei  também que se eu tivesse feito isso, você não teria realizado um sonho tão grande que foi viajar para o exterior. Sei também que minha vontade de controlar tudo iria atrapalhar que os seus laços com minhas irmãs e meu pai se estreitassem. 


        Mãe, hoje eu revisei suas mensagens no seu celular, e li várias mensagens que você enviou pro meu pai. Eu acho que a proximidade de vocês dois nestes dois últimos anos foi essencial pra você tirar todo desentendimento dos últimos tempos. Foi tão lindo ler e ouvir os áudios de você dizendo "amor, estou aqui no mercado, vem me buscar". Eu sei que se eu tivesse aqui, eu faria tudo isso. Então, Deus fez certo em me deixar longe de você por uns tempos. Mas é difícil entender.


        Mãe, eu e a Dani estamos sentindo muita raiva hoje, muita mesmo. Raiva das pessoas que estão continuando suas vidas, trabalhando, cobrando prazos, compartilhando memes, fazendo exercícios. Mãe, porque elas não estão tristes? Porque elas estão fazendo tudo isso? Como elas tem energia? Porque eu só quero desistir de tudo, mãe. Eu só queria estar do seu lado. Mas sei que você também queria que eu continuasse com minha vida. 


        Mãe, eu também estou com raiva porque você foi muito ansiosa. Eu iria chegar na terça para passarmos vários dias juntas e você resolver partir no domingo. Eu falei isso pra você na sua despedida e hoje de manhã quando conversei com você. Por que, mãe? Custava esperar mais 2 dias? Eu só queria te abraçar mais uma vez, dizer que eu estava aqui, que eu te amo, e que logo o meu ar condicionado iria chegar e poderíamos deixar meu quarto bem aconchegante para eu trabalhar enquanto você via TV na cama, depois faríamos bolo e tomaríamos chá. Mas também acho mãe que esse lado daí é melhor do que aqui, né? Teve ter sido uma escolha fácil. Esse mundo é muito chato, burocrático e cruel. É, pensando bem fica difícil para o ar condicionado e bolo competirem com sua vida atual, que deve ser bem mais emocionante que aqui. Tudo bem, logo nós vamos nos encontrar!


        Mãe, eu também estou pensando em fazer uma tatuagem em sua homenagem. Ainda não sei o que exatamente vou fazer, mas vou fazer. Acho que você merece né? Eu estou sentindo muito sua falta.





        Mãe, hoje eu tentei trabalhar, mas tá dificil demais me concentrar. Eu fiz terapia, ouvi podcast, conversei com o Tiago, mas nada ajudou. Tudo me faz lembrar a senhora e tudo me dói. Você não podia ter partido, mãe. Como vamos conseguir seguir em frente? Ninguém nos preparou pra isso. Mas vou tentar correr ao máximo aqui para estender as roupas, passar um pano na casa e fazer a janta. Te amo.


       Mãe, hoje dois dias depois que você foi embora, nós fizemos janta aqui em casa e eu não gostei do strogonoff porque acho que coloquei muita mostarda, mas todo mundo adorou. Que bom né? Acho que você ia gostar muito porque no geral você gostava da minha comida. Mas a sua sempre vai ser a melhor, mesmo que você usasse muito óleo. Mãe, eu fiz um quadro bonito de fotos suas e tô orgulhosa porque o pai tá lavando e estendo as roupas, e hoje era pra ele tirar o lixo cedo, mas o lixeiro passou antes das 7h. Que saco né? Eu ficava admirada de como sempre você acordava super cedo para deixar o lixo na rua. Mas acho que vou começar a deixar a noite, é menos arriscado né? 


       Mãe,  hoje eu percebi que sua partida dói, porque te amamos muito. Só que o seu amor também vai ser a cura, porque ele vai preencher o vazio que vai ficando. Hoje grudei uma foto na parede, onde estávamos eu, você, a Bruna e a Dani na sua barriga. Como a gente era linda né? Obrigada por ter suportado tudo e gerado essa família. Te amo!


        Mãe, hoje fazem 4 dias desde que nos despedimos e agora a noite estou combinando com a Naira de ir amanhã na feira, comprar mamão e comer pastel. Com toda certeza você iria conosco e diria que iria aproveitar para ver a panela, o tempero, ver algum queijo, peixe e amendoim também. Olha mãe, você tá fazendo falta, mas uma coisa é certa: eu vou comprar só o necessário pra não deixar estragar. Você tinha isso né, de comprar muito e ficar guardado. Tiquinha, Tiquinha. Eu estou sentindo falta até disso em você. Na verdade, mãe, agora eu sinto que estou me conformando mais e vejo que algumas coisas eu não vou sentir falta, como sua bagunça e muita coisa na mesa. Como você conseguia? Hoje eu entendo que é porque você não tava bem. Mas eu daria tudo pra ter você de volta, até aceitaria sua bagunça de novo. Deus sabe de tudo. 


          Mãe, agora é domingo à noite e eu deveria estar indo dormir porque amanhã tenho aula às 6h, já que a aula vai ser da Alemanha. Finalmente a disciplina que restou vai ser lecionada! Eu já estava bem angustiada. Mãe, ontem foi sua missa de sétimo dia e eu fiquei muito emocionada quando a comentarista disse que a intenção era pelo sétimo dia de Adriana Barbosa e também quando o padre falou palavras lindas de conforto e rezamos um Ave Maria. Eu senti o choro na garganta, mas fiquei forte porque tinha muita gente lá. Mãe, sua missa estava repleta de gente que gostava muito de você. Só você pra fazer o pai ir na igreja né? Acho engraçado como ele não sabe os trejeitos da oração, mas sabe rezar um Ave Maria e falar amém. 


        Mãe, pra mim a missa foi como o rito de sua passagem: agora já entregamos sua alma pra Deus e você pode repousar eternamente. Mãe, eu não sei como deve ser o julgamento no céu, mas eu tenho certeza que pela sua bondade, seu amor, sua capacidade de perdoar você agora repousa com Jesus. Eu rezo todos os dias por isso. Depois da sua missa, nós fomos comer pizza e beber vinho numa pizzaria bem legal. Lembra quando comemos aquela pizza divina perto da minha casa em Lisboa? Foi maravilhoso né? Acho que bebemos cerveja também. Ontem eu quis beber vinho e ir em um lugar chique, porque eu sei que você adorava esses lugares. Você era uma mulher muito chique e também muito humilde, sabia transitar nesses dois ambientes. Acho que puxei isso de você né? Obrigada por me ensinar a ser assim.


        Mãe, nesse final de semana, conforme prometido, fui à feira com a Naira e a Dani. Estava meio frio, eu tive que usar umas roupas suas, mas consegui comprar mamões, maracujá, jabuticaba, cebola, tomate cereja, abobrinha, almeirão e claro, pastel com caçulinha. Mãe, eu sempre vou lembrar disso com você. Espero que no céu tenha feira pra você passear também. A tarde fomos no shopping de Sumaré, o pai nunca havia ido lá. Eu fui comprar um sapato adequado pra missa, a Dani comprou uma blusa e o pai comprou duas calças. Já hoje nós ficamos em casa o dia todo, dormimos bastante e eu nem tentei limpar a casa porque o Alonso suja tudo né? Agora eu sei o que você tava sentindo aqueles dias. Ele é muito danadinho.


        Mãe, como eu falei pra você, a sua partida vem me lembrando da finitude da vida e você mesmo me mostrou que a vida é curta. Será que eu deveria ser mais impulsiva? Como é ouvir o coração? Eu sei lá mãe, eu tô muito perdida, muito perdida. Talvez eu não esteja, só esteja com medo. O que eu sei é que estou triste porque eu sinto sua falta demais mãe, demais mesmo. Queria muito você aqui comigo. Me sinto triste em pensar que vou viver o resto da minha vida longe de você, isso não está certo. Deus sabe de tudo né? Espero que ele me conforme e nos conforte, porque não tá nada fácil. Te amo mãe, boa Semana Santa pra você! 


        Mãe, hoje foi um dia muito difícil. Fez 1 semana que nós nos despedimos do seu corpo e eu pensei que já estaria mais conformada. Mas nós fomos buscar o documento que vai fazer sua certidão de óbito e também falamos do seu inventário, daí meu corpo estremeceu de novo. Mãe, eu odeio tratar você como a pessoa que partiu. Pra mim você nunca vai partir, você vai tá sempre viva dentro de mim. Mãe, eu estava ouvindo seus áudios e realmente nos últimos meses você piorou bastante né? Até a sua voz estava mais fraquinha, acho que seu corpo estava padecendo mais. Como eu não percebi? Eu imaginei que seria só uma fase, igual a Vó Veronica que sempre fica internada, ficava fraquinha, mas aguentou bastante. Quem imaginaria mamãe que você iria tão rápido? Eu pensei que demoraria mais. A vida é engraçada né? 


        Mãe, hoje eu só quero lembrar das coisas boas que você deixou, a mulher maravilhosa que você é e o quanto eu não vejo a hora de te abraçar de novo, porque você era meu doce e eu sempre tive o maior prazer em te agradar. Espero que alguém aí no céu esteja fazendo suas vontades. Te amo mãe! 

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