Viver é melhor que sonhar




"Não quero lhe falar, meu grande amor 
Das coisas que aprendi nos discos 
Quero lhe contar como eu vivi 
E tudo o que aconteceu comigo 

Viver é melhor que sonhar 
Eu sei que o amor é uma coisa boa 
Mas também sei que qualquer canto 
É menor do que a vida de qualquer pessoa"


        Essa música em especial sempre mexeu comigo desde a adolescência. No começo era por conta da constatação de que nós continuamos a fazer tudo como nossos pais. E essa é uma bela verdade. Eu nunca me esqueço de uma vez, na igreja (esse blog já viu vários textos meus do quanto eu era uma jovem cristã devota, bons tempos) eu reclamei para uma liderança da juventude o quanto meus pais reclamavam que minha geração era fraca, que era pior que a deles, de que não gostávamos do trabalho, que não tínhamos responsabilidade, que nossos gostos musicais era péssimos, aquela ladainha de sempre. E aquela mulher, que inclusive era amiga da adolescência dos meus pais (o irmão dela era namorado da melhor amiga da minha mãe) disse que os nossos pais, quando jovens, também eram objeto de reclamação pelos seus pais, seja pelos gostos, pela pouca aptidão pelo trabalho, pelas músicas que escutavam, pelas roupas que vestiam. E daí eu me lembrei da história que meu pai me contou, de quando ele tinha por volta de 17 anos e utilizava os cabelos típicos dos anos 80, um mullet com direito a franja e cabelo até o meio do pescoço. E o corte era motivo de grande enfurecimento pelo meu avô, que sempre proferia diversas palavras duras contra o estilo daquele jovem que, em alguns anos, seria o meu pai. E isso me mostrou que a juventude dos filhos sempre seria motivo de comparação dos pais, que sempre acreditariam que sua geração é a melhor do que a que veio depois.

Este era o típico cabelo dos anos 80, usado pelo meu pai
e por vários amigos dele



        Passados os anos, essa música ainda me marca muito por outros trechos. Dessa vez, em especial a estes dois que deixei no início. E isso tem um motivo em específico.

        Essa semana na terapia (ou análise, eu nunca sei diferenciar. Minha psicóloga é psicanalista também, então fica aí a dúvida no ar) fui instigada a falar sobre meus sonhos. Isso começou com minha fala sobre minhas eternas mudanças. Preciso falar que já aos 19 anos, eu me mudei para São Carlos, para fazer faculdade (especificadamente Ciências Sociais na UFScar). Um mês depois, eu me mudei para Londrina, onde fui estudar aquilo que realmente queria. Aos 21 passei cerca de 4 meses em Faro. Depois, aos 24, retornei para Nova Odessa. Um ano depois, aos 25, voltei a morar em Londrina. Aos 26, me mudei para Lisboa. Aos 27, iniciei o período de 5 meses na Alemanha. Aos 28, volto para Lisboa.

        E então iniciamos a busca por entender meu anseio em sempre estar longe de onde eu vim e também de sempre estar em mudança. Eu imaginei que entrar neste assunto estaria ligado a uma tentativa de fuga, mas eu passei a entender que a mudança tem muito mais a ver a minha ânsia pelo novo, em se fazer concreto meus sonhos, de experimentar o mundo, de ter contato com diferentes culturas, por querer entender o mundo para além da minha visão de mundo (por minha visão de mundo aqui podemos entender que, inicialmente, a visão vem de uma mulher branca, de família cristã, tradicional, de interior e por aí vai).

        De fato, esta questão da mudança, de viagem, de contato com o externo tem muito menos a ver com os pontos turísticos que eu eu quero conhecer e está mais relacionado com aquilo que eu me sinto estando naquele ambiente estranho. E neste ponto entra a Elis: eu não quero contar sobre aquilo que aprendi nos discos, nos livros, nos museus, na história, nos cartazes. Eu quero lhe contar como tudo isso que eu vi mexeu comigo. Como isso entrou na minha essência e mudou aquilo que eu sou. Quero lhe contar e lhe falar como eu me senti conhecendo uma cultura em que sorrir não faz parte do dia a dia. Quero lhe contar como eu me senti ao não ver sol por semanas. Quero lhe contar como é estar no meio de um lugar em que as pessoas falam a sua língua, mas que mesmo assim você se sente como se as línguas fossem diferentes. Quero lhe contar a minha percepção sobre estar em um lugar em que não se há carros velhos nas ruas, sobre como é poder caminhar sozinha, a noite na rua, mas mesmo assim sentir tanta falta do seu lugar em que tudo isso não passa de utopia.

Minha rua em Hannover (e a Bebel). É tudo muito clean,
muito silencioso e bem "não-casa"


        E dentro disso, nós (ou eu mesma, enfim) falei sobre é o meu processo de sonhar. Eu sou uma grande influenciadora do sonhar, acho que viver sem sonhar é estar um pouco morto por dentro e que são os sonhos que nos instigam a levantar dia pós dia (muito embora parte do motivo sejam as nossas obrigações). Digo isso enquanto pessoa que há a quatro anos trabalha por mim mesma. Cuidar dos meus próprios negócios que trouxe uma flexibilidade dos sonhos, mas sei tem dias que por não haver a obrigação de levantar muito cedo para pegar um transporte e bater um ponto pode ser um grande desafio para simplesmente acordar. E é aí que entram meus sonhos, porque eles se tornam o combustível para lidar com aquele processo que não desenrola, com aquele projeto cheio de pontas soltas, com tanto equívoco judicial e principalmente com o desânimo que é lidar com a justiça.

        Preciso explicar a forma que eu sonho: para mim, sonhar tem a ver em pensar em algo grandioso, que te traz brilho nos olhos e pensar em cada step a ser cumprido até alcançar aquele objetivo. Por exemplo, meu próximo sonho é ir para Nova York e conhecer o cenário de tantas séries que eu gosto muito. Também quero muito conhecer a Disney, Los Angeles e Las Vegas. Eu sei que um grande passo é tirar o visto e sei também que este é um fator que barra o sonho de muita gente. Então, mais do que sonhar com os pontos turísticos que eu quero conhecer ou de abrir uma pasta no Pinterest com inspirações de fotos que eu quero tirar, eu passei dias e dias aprendendo sobre o processo do visto americano, porque sei que este vai ser meu primeiro step para alcançar meu sonho.

        O mesmo aconteceu com meu mestrado. Inicialmente, meu sonho era fazer LLM na Inglaterra ou nos EUA, mas acontece que as universidades de lá são caríssimas e eu também não consegui alguma bolsa de estudo que me ajudasse com os custos. Então, depois de muito choro, decepção e terapia, eu decidi mudar a rota do meu sonho e fazer meu mestrado em Portugal, país que me possibilitaria continuar trabalhando como advogada no Brasil e custear meus estudos. Pra isso, eu tive que aceitar um contrato que não era dos melhores e isso tem me ajudado demais a finalizar esta etapa. E como Portugal também não era bem o que eu queria, eu escolhi um mestrado em que obrigatoriamente eu teria que estudar um semestre na Alemanha, França ou Lituânia. And here we go!

        Então eu percebo um padrão nos meus sonhos: mais do que a idealização do como vai ser, eu sonho pensando em cada passo que eu tenho que seguir até alcançar. Mais do que conhecer o Mickey, eu penso em quanto tempo vou levar para tirar o visto ou quanto tempo deverei juntar dinheiro para voar para a América. Isso não é necessariamente ruim, porque tem me ajudado a alcançar meus objetivos com maestria. Mas também me rouba uma parte importante que é o encantamento, a idealização, o imaginar como vai ser, o sair da realidade, partes que são tão próprias dos sonhos. Eu vejo que quando eu divido um sonho em partes, muito embora isso facilite alcançar o que eu quero, isso torna o meu sonho um processo, que é tão similar a uma coisa técnica. Seria isso realmente bem? Será que ser pragmático é mesmo ruim?

        E aí que a Elis entra de novo: viver é melhor que sonhar! Mas será mesmo? Eu como uma pessoa que desde sempre vivo de criar histórias na minha cabeça, de como eu seria conhecendo lugar x ou como seria ser uma pessoa que tivesse isso ou aquilo, sei que eu me sinto mais feliz planejando aquela coisa prática do que só sonhando. Mas sei que também a vida prática nos tira muito daquela coisa boa que é idealizar. Por exemplo, ano passado realizei um sonho muito grande que foi fazer um curso no exterior, com bolsa de estudos e dando palestra em outra língua. Eu simplesmente visitei Veneza e Milão com amigas que fiz no curso da faculdade, almocei e jantei em restaurantes maravilhosos sob as expensas da universidade e pude fazer tudo isso enquanto trabalhava para o Brasil. E ah, consegui essa bolsa porque minhas notas eram realmente boas.

        Sim, isso foi um grande sonho, mas uma semana antes da viagem, eu tive uma severa crise de ansiedade. Medo do dinheiro não dar, medo de não desenrolar no inglês e a palestra ser uma porcaria, medo de não dar conta do meu trabalho, medo da minha professora em Portugal não aceitar o curso e não permitir que eu alterasse a data da minha apresentação, medo de tudo! Foi terrível e eu pensei seriamente em desistir. Mas ainda bem que não desisti. Então veja bem: aquilo que eu vivi foi um sonho, mas o anterior disso foi aterrorizador pra mim. É claro que na minha idealização eu me daria bem em tudo (e realmente me dei bem, deu tudo certo), mas o processo de alcançar me deu muito medo. E eu acho que é por isso que eu separo meus sonhos em passos: assim eu consigo antecipar cada erro e me preparar para o pior (é claro que isso é uma ilusão e que nós nunca temos o controle de nada, mas isso é papo para outro dia).

Agradeço muito por não ter desistido de Pádua porque
significaria desistir de tomar gelato todos os dias :)


        E, por fim, não posso deixar de falar sobre as duas últimas linhas da última estrofe. Esta eterna mudança, estes vários sonhos, estes vários objetivos e passos delimitados só existem porque tudo isso me faz sentir em casa. Muito embora Nova Odessa seja o meu lugar de refúgio, onde eu sinto que sou Karine, que meu sotaque ataca muito (segundo o Tiago), onde eu sinto uma segurança absurda, eu sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa. Talvez eu me sinta tão bem em qualquer lugar do mundo (e minhas mudanças não me deixar mentir) porque eu sei que estes cantos são bem menores do que eu. Eu sou o meu lar e eu sou gigante. É claro que cada lugar me ensina muito, mas é porque eu me proponho a aprender. E eu sei que cada canto traz sempre um adorno muito lindo para o meu lar, mas também sei que as vezes alguns cantos trazem alguma poeira e quebram alguma coisa dentro desta casa. E tudo isso é muito bonito. Mesmo tendo um lugar de refúgio, eu sei que eu preciso de mais. É uma coisa tão mais forte do que eu e que é difícil controlar. Inclusive, eu já tentei reprimir, já tentei encaixar uma versão que acreditei como ideal para mim, porque é a ideal para o mundo e o que eu alcancei com isso foi muita angústia e pouca vida.

            Eu sei que a chegada dos 30 nos deixa reflexivos e pensativos sobre o futuro, mas sei também que a maturidade que se alcança nesta fase nos ajuda a clarear muita coisa. Eu que já que ouvi tanto do meu pai que eu era muito nova e ainda não entendia o porquê das coisas, hoje posso ver que meu velho estava certo - como sempre. 

       Isso muito doido, porque só confirma aquilo que a Elis já nos dizia: ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.

            

                

            

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